Nos primeiros três trimestres de 2024, fecharam mais de duas mil fábricas no setor da indústria transformadora do vestuário e artigos de couro de luxo de Itália, segundo o InfoCamere (portal do registo comercial de Itália), adiantando ainda que a produção industrial do setor esteve entre as que tiveram o pior desempenho do país. Para enfrentar este período, o Gruppo Florence, uma holding que junta quase 40 fornecedores, está a desenvolver novos modelos para fazer face às pressões de um mercado em mudança.
A expressão “Made in Italy” (“fabricado em Itália”, em português) carrega consigo um semblante de prestígio e exclusividade. Aliás, algumas das maiores marcas de luxo do mundo dependem de ateliers e oficinas italianas para produzir artigos de alta qualidade, desde bolsas, sapatos e roupas de alta-costura. Itália é o epicentro da cadeia de abastecimento do setor do luxo: cerca de metade de todos os bens de luxo são produzidos em Itália, segundo a consultora Bain & Co.
De salientar que a crise do setor industrial italiano está a ameaçar este pilar do ecossistema do luxo. A situação é o resultado de uma forte recessão no mercado que foi agravada pela inflação, escândalos e novas exigências regulamentares, expondo ainda os desafios estruturais e desequilíbrios de poder que a indústria tem enfrentado durante anos: as marcas reduzem os custos e aumentam as margens de lucro, grande parte das vezes à custa dos seus fornecedores, ao mesmo tempo que promovem o seu compromisso com o artesanato e a qualidade.
Agora, os fornecedores qualificados de que as marcas dependem para cumprir estas promessas, enfrentam uma crise existencial, numa altura em que os consumidores questionam cada vez mais se os bens de luxo ainda valem os seus preços.
Uma crise duradoura
Embora as marcas de luxo continuem a melhorar a sua imagem com campanhas de marketing que enfatizam o artesanato, também procuraram processos de fabrico mais baratos noutros países, de forma a aproveitar as oportunidades proporcionadas pela globalização do mercado nos últimos 30 anos.
Em Itália, a procura de uma produção mais ágil e a preços mais baixos deu origem a uma economia paralela de fabricantes com preços reduzidos. Estes operam com pouco respeito pelas leis laborais, explorando uma força de trabalho, maioritariamente migrante, que é frequentemente empregada clandestinamente para trabalhar longas horas por salários mínimos. De facto, uma investigação levada a cabo pelas autoridades italianas associou marcas como a Armani e a Dior a fábricas de exploração de mão-de-obra.
A associar a isto, encontram-se ainda novas pressões com as mudanças do mercado. Apesar do mercado de luxo ter crescido durante a pandemia, só ajudou a tapar as fissuras existentes desde 2010. Segundo o InfoCamere, entre 2010 e 2023, o número de empresas têxteis e de artigos de couro caiu 27%. De salientar que, no ano passado, o ritmo dos encerramentos acelerou.
A acrescentar a isto, a recente eleição de Trump nos EUA levantou o espectro de novas tarifas, o que acarreta mais pressão para o setor, bem como as novas regulamentações europeias, destinadas a melhorar o tratamento dispensado aos trabalhadores pela indústria da moda e a reduzir a sua pegada ambiental, estão a introduzir novos requisitos dispendiosos e demorados para um setor que já se encontra sobre forte pressão.
“O clima é de desespero em Itália”, disse Alberto Candiani, proprietário e presidente da produtora italiana Candiani Denim. A empresa, fundada pelo bisavô de Candiani, em 1938, sobreviveu elevando a sua oferta e apostando na inovação e na sustentabilidade como pontos de diferenciação. Mas mesmo assim, tem sido um desafio sobreviver.
Nos últimos anos, os aumentos de preços nas principais marcas de luxo ultrapassaram largamente a inflação, ajudando a aumentar as suas margens de lucro, realidade que não chegou aos fabricantes. O CEO da Reda, fabricante italiano de têxteis de lã merino, Botto Poala, afirma que “não é possível que sapatos que custem 20 euros (para produzir) estejam à venda na loja por 3.000 euros.”
A crise não é um desafio apenas para os fornecedores. Existe uma responsabilidade iminente para as marcas de luxo, que estão sob pressão crescente. Em parte, pelos reguladores, a quem têm de demonstrar que as suas cadeias de abastecimento estão livres de abusos laborais. E também por parte dos consumidores que exigem o cumprimento das promessas de aposta no artesanato e qualidade para justificar preços cada vez mais exorbitantes.
Na procura de novos modelos
Alguns analistas e fornecedores temem que a mudança na dinâmica do mercado acabe por esmagar os pequenos e médios ateliers, que há muito caracterizam o setor da indústria transformadora de luxo em Itália. De facto, os maiores operadores estão melhor posicionados para racionalizar custos, navegar na volatilidade, garantir a transparência da cadeia de abastecimento e investir em iniciativas digitais e de sustentabilidade. Mas tais mudanças também acarretam riscos para a cultura da indústria italiana, conhecida pelo foco no artesanato, que poderá ceder à eficiência empresarial e à deslocalização.
Botto Poala chega mesmo a afirmar que: “Se perdermos o ‘Made in Italy’ é porque nos esquecemos do que significa. Precisamos de investir nas coisas intangíveis que fazem parte do nosso valor enquanto país.”
O Gruppo Florence, fundado em 2020 por um grupo de investidores, é percursor deste objetivo, nascendo como resposta aos desafios da indústria transformadora italiana. Com quase 40 fornecedores adquiridos, a holding funciona como uma espécie de cooperativa moderna, permitindo que cada oficina mantenha a sua identidade, mas usufrua de suporte centralizado em áreas como a auditoria e compliance, a digitalização de processos e as inovações em sustentabilidade.
Esse modelo contribui para garantir uma maior estabilidade em tempos de crise, pois a diversificação de clientes e a integração de sistemas geram benefícios. De facto, em 2023 (os dados de 2024 ainda não se encontram disponíveis), o Gruppo Florence gerou mais de 800 milhões de euros em volume de negócios.
O CEO Attila Kiss adianta que “precisávamos de criar um projeto onde ainda defendêssemos estas qualidades (“Made in Italy”), mas melhorássemos o que o mercado está a pedir. Tentámos montar uma organização inovadora onde ainda preservamos a identidade destas empresas.”