Autor: Pedro Fonseca
Mestre em Economia | Diretor do Felgueiras Magazine
diretor@felgueirasmagazine.pt
Em 1973, no concelho de Felgueiras, nasceu uma marca que, cinco décadas depois, se tornaria um nome familiar em mais de 35 países ao redor do mundo, para onde exporta calçado. A Felmini, conhecida por suas botas confortáveis e de alta qualidade para mulheres, celebra este mês o seu 50º aniversário. Tivemos o privilégio de sentar com Joaquim Moreira, o empresário visionário por trás desta marca icônica, para uma conversa sobre a jornada da Felmini, desde seus começos até se tornar a marca que hoje todos conhecemos.
A história da Felmini é uma tapeçaria rica de inovação, resiliência e uma busca incessante pela excelência. Hoje, com mais de 1500 pontos de venda em todo o mundo e uma presença marcante em países como Itália, França, Alemanha e Espanha, a Felmini é um testemunho do poder da visão, da paixão e também de trabalho árduo.
À medida que nos preparamos para mergulhar nesta narrativa, somos lembrados de que a história da Felmini não é apenas sobre sapatos; é sobre as pessoas, as relações e a comunidade que foram construídas ao longo do caminho. É uma história de um legado português e de Felgueiras que transcendeu fronteiras, unindo pessoas de diferentes culturas e nações através do amor comum pelo calçado de qualidade excecional.
Felgueiras Magazine – Como é que tudo começou há 50 anos atrás?
Joaquim Moreira – Até há 50 anos, só conhecia os sapatos que comprava e calçava. Entretanto fui convidado ser sócio de uma pequena fábrica de calçado. O chamado “sócio investidor”. E eu acedi. Começámos logo com umas 18, 20 pessoas a fazer sapatos de criança.
Vendíamos para o mercado interno, para o mercado português. Arranjamos vendedores para o Porto, para Lisboa e para o centro do país. Contratámos um estilista que fomos buscar a São João de Madeira. Veio para Felgueiras viver e trabalhava nas nossas coleções. Mais tarde, comecei a fazer senhora. E o calçado de senhora começou a ter muito mais saída do que o de criança. E o calado de senhora adaptava-se mais às minhas ideias, tinha mais inovação. Passado um ano, ou ano e meio, estávamos a fazer só calçado de senhora e começámos a fazer botas, altas, que ninguém fazia na altura aqui em Felgueiras.
Felgueiras Magazine – Já havia muita indústria em Felgueiras nessa altura?
Joaquim Moreira – Sim, havia. Havia indústria toda de Torrados. Havia muita indústria, muitas que ainda hoje existem. Já se produzia muito sapato aqui em Felgueiras. E assim começamos com o calçado de senhora, sempre no mercado interno, até que veio a oportunidade de começarmos a exportar.
Felgueiras Magazine – Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974. Como é que foi esse período para uma empresa de Felgueiras, que tinha menos de um ano de vida?
Joaquim Moreira – Só passado 16 ou 18 horas é que a notícia do 25 de Abril chegou aqui a Felgueiras. Eu não tinha noção na altura. Mas o 25 de Abril foi muito bom. Vieram os aumentos salariais, o mercado começou a crescer, o artigo começou a ser vendido nas sapatarias, de tal maneira que a produção não chegava para as vendas que se realizavam. Portanto, foi uma altura muito boa, vendia-se tudo e mais alguma coisa.
De Felgueiras para o Mundo
Felgueiras Magazine – Quando é que a Felmini pegou nos seus sapatos e foi por essa Europa fora à procura de clientes? Como é que eram esses tempos?
Joaquim Moreira – Nós começamos com um senhor francês, que era industrial, o Sr. Chenaux. Veio a Portugal e convidou a Felmini e mais algumas empresas a fazerem sapatos para ele comercializar em França. E assim começámos a fazer sapatos para o França, que na altura eram uns “buracos para os pés”: nada a ver com os sapatos que se fazem hoje. Mas enfim, vendia-se e vendia-se muito bem.
Entretanto realizou-se a primeira edição da MOCAP. Eu não fui expor à primeira, mas fui visitar. Gostei. Inscrevi-me então na edição seguinte, creio que foi em Espinho, no hotel de Espinho. E a partir daí começámos a fazer contactos com clientes de toda a Europa.
Felgueiras Magazine – Vinham muitos compradores nessa altura à MOCAP?
Joaquim Moreira – Eram feiras bem visitadas. Os escandinavos eram, na altura, os principais importadores de Felgueiras, e não só. Nessa altura nós fazíamos muito produto, muita bota. Eram os nossos principais clientes. Depois da MOCAP, começamos a fazer a GDS, na Alemanha, que também era uma feira das maiores do mundo, e onde também fazíamos contactos. Assim começou.
Depois da GDS veio Milão. Foi nessa altura que eu comecei a fazer o retalho. Começamos a produzir e a vender a nossa marca na Europa. Começámos a fazer as feiras onde vinham mais clientes. Então mudámos da GDS para Milão. Na primeira feira que fiz em Milão tive logo um sucesso grande. E continuamos lá, e ainda hoje fazemos a feira em Milão.
Entretanto começámos a desenvolver a nossa marca, a fazer a feira de Madrid, a fazer a feira de Paris, que ainda a fazemos hoje, e outras feiras que apareceram, umas com mais sucesso, outras com menos sucesso.
Felgueiras Magazine – As feiras continuam a valer a pena? O que é que tem mudado nas feiras ao longo destes anos?
Joaquim Moreira – Os clientes hoje vão menos às feiras. A feira hoje é uma despesa muito grande para o nosso cliente de retalho. O cliente importador, esse vai às feiras naturalmente, porque vai ver e compra quantidades. O nosso cliente de retalho, o espanhol, o francês, o alemão, que vai a Paris, a Milão, por exemplo, reconheço que vem menos. A despesa é muito grande. Os hotéis são muito caros hoje, as viagens também não são fáceis, e então recebemos bastantes menos clientes nas feiras do que recebíamos antes.
Felgueiras Magazine – Em comparação com os dias de hoje, em que quase todos falamos pelo menos o inglês, que é a língua universal dos negócios, há uns anos nem toda a gente falava línguas estrangeiras. Era uma barreira nos contactos comerciais?
Joaquim Moreira – Era, efetivamente, era uma barreira. Eu, quando recebi o Sr. Chenaux na minha empresa, tive que pedir alguém de Felgueiras para me ir lá fazer as traduções. Recorda-me perfeitamente uma menina que me fez esse favor durante algum tempo, quando ele vinha cá. Era a filha do dr. Hermínio da farmácia. Essa menina foi que me traduziu o Sr. Chenaux, durante muito tempo.
Depois tinha funcionário que falava alguma coisa francês. Começou a desenvolver o francês e depois ficou ele a traduzir. Esse funcionário começou a ser o vendedor do estrangeiro, ou seja, a pessoa que estava relacionada com os clientes de fora de Portugal.
Felgueiras Magazine – A Felmini, ao longo destes 50 anos passou por um Presidente do Conselho, ainda na ditadura, Marcello Caetano, e na democracia por 17 Primeiros Ministros. Qual deles recorda como o “mais amigo” da indústria do calçado?
Joaquim Moreira – Eu penso que foi o Cavaco Silva, aquele que mais nos marcou a nível de governo e que não nos criou tantas dificuldades. Eu creio que foi nessa altura que começámos a ter problemas com a Rússia. E o ministro Mira Amaral ajudou-nos bastante a facilitar, ao nível bancário, os problemas que tínhamos. Ajudou-nos muito a resolver a forma de nos financiarmos com as vendas que fazíamos para o mercado soviético.
Os desafios de construir e manter uma marca própria no mundo competitivo do calçado
Felgueiras Magazine – A Felmini, desde sempre apostou na marca própria, ao contrário da maioria das fábricas portuguesas de calçado, que optam por fabricar calçado para marcas estrangeiras.
Joaquim Moreira – Nós tivemos sempre a marca Felmini. Vender só a marca Felmini foi há 19 anos. Foi um momento importante para a minha empresa: começar a vender só o produto com a marca Felmini. Antes disso, colocávamos a etiqueta de outro cliente.
Felgueiras Magazine – É muito diferente vender só a marca Felmini do que produzir para marcas internacionais e ter lá a etiqueta de outras marcas. São outros desafios?
Joaquim Moreira – É um desafio muito, muito grande. É um desafio porque nós temos de construir a nossa coleção. Se a nossa coleção não for bem construída, se não for de acordo com o que o mercado precisa, se não for de acordo com a tendência da moda, o vendedor passa. Ou nós vamos para as feiras, os clientes passam e não olham, não entram, não querem saber. Portanto, é sempre uma responsabilidade muito grande construir uma coleção para pôr na rua, no mercado. É diferente do que chegar cliente à nossa beira e dizer: olha tens aqui 20 mil pares deste modelo, tens 10 mil daquele, tens aqui esta fotografia, copia!
Felgueiras Magazine – Nestes 50 anos, qual foi o período mais difícil da Felmini?
Joaquim Moreira – Tivemos vários, vários momentos difíceis. Só realmente a união familiar, a nossa força, o dizer que tínhamos que vencer… só assim é que conseguimos manter a empresa. Ter força para que realmente a Felmini esteja na posição que está.
Felgueiras Magazine – E qual foi o momento mais gratificante?
Joaquim Moreira – É o sucesso da marca. Quando nós vamos a uma feira e temos o stand cheio, temos clientes à fila para fazer encomendas, para pedir amostras… isso faz esquecer tudo. É o melhor prazer que se pode ter na vida, quando uma coleção vai para o mercado e é bem recebida.
“O ADN tem que estar lá, senão não é Felmini.”
Felgueiras Magazine – É mais difícil ser empresário hoje, ou era mais difícil há 40 ou 50 anos atrás?
Joaquim Moreira – É muito mais difícil ser hoje empresário. Para ter uma empresa que seja minimamente rentável, no caso da minha, em que temos de fazer, repito, temos de fazer o produto e apresentá-lo ao cliente, é muito mais difícil. Hoje, 70% das nossas preocupações é com a coleção. E ainda não vendemos uma coleção, já estamos a fazer outra. Estive há pouco a ter uma reunião online com alguns vendedores, onde pretendia saber como é que estamos com o mercado, o que é que o cliente procura, fazer uma pesquisa, saber o que é que o cliente quer, o que é que a sapataria procura. Qual o tipo de forma ou o tipo de salto, para podermos ajudar os nossos estilistas a completar o nosso look. Porque a Felmini tem look. Tem ADN. E esse ADN nós queremos mantê-lo. O ADN tem que estar lá, senão não é Felmini.
Felgueiras Magazine – Como é que vê o futuro do calçado em Portugal?
Joaquim Moreira – Nós temos de ter esperanças, não é? Está tudo a mudar muito. Não vai ser fácil, porque os salários vão subir e nós não somos tão produtivos como deveríamos ser, até porque também fazemos um pouco de artesanato. Nós aqui em Felmini é muito de artesanato, o que é mais complicado.
Realmente se tivermos uns bons modelos, uma boa coleção, o preço ainda é admissível. Se não acontecer isso, pode ser problema. Mas como, infelizmente, as fábricas estão a acabar na Europa e nós estamos aqui na cauda dela, pode ser que as últimas fábricas a acabar sejam aqui nesta esta cauda da Europa onde nós estamos. Pode ser que dure mais uma ou duas dúzias de anos.
Felgueiras Magazine – Que conselho dava a jovem que quisesse ser agora empresário e começar a sua atividade?
Eu hoje não tenho palavras para animar ninguém. Ou uma tecnologia nova, ou uma coisa nova, agora o que é tradicional está muito difícil. É muito difícil a um jovem começar com uma indústria como a do calçado, igual às nossas, seria muito difícil.
Felgueiras Magazine – O que é que Felgueiras não tem, mas deveria ter?
Falta que as pessoas se relacionem mais, falta que as pessoas andem mais na rua, lugares para convívio. Coisas que vemos nos concelhos limítrofes de Felgueiras, onde se vê pessoas na rua, vê-se pessoas a conviver, vê-se pessoas a passear, mas aqui em Felgueiras não se vê. Aqui é tudo apagado, as coisas são muito limitadas. Precisamos de “ambiente”. Mas a culpa também é das pessoas. E eu serei culpado também.